15.2.11

"Saber dizer

A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificildade uma espiral: é um círculo que sobre sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtualque se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
(...) São intransmissiveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como devem sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvim disse, querendo dizer que estava a beira de chorar, não 'tenho vontade de chorar', que é como diria um adulto, isto é, um estupido, senão isto: 'tenho vontade de lagrimas'. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lagrimas a romper pelas palpebras conscientes da amargura liquida. " Tenho vontade de lágrimas". Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.

Dizer! saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual!Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstracto do céu azul sem sentido."

Fernando Pessoa

Nenhum comentário: