28.6.11

Antes de nascer o mundo é um dos livros mais lindos que eu já encontrei...

"Sob a sombra do 'nntonndo', parecia que todos tínhamos resvalado no sono. De repente, porém, o militar se ergueu, impulsionado por uma mola interior. Apontou a arma e o disparo rasgou para sempre o silencio. Um restolhar entre os arbustos e atropelámo-nos, em corrida, a recolher o alvejado antílope. Mas o bicho não estava onde seria de esperar. Escapara entre a vegetação. No chão, um rastro de sangue indicava o seu trajecto. Foi então que testemunhávamos a inesperada transformação em Kalash. Ele tonteou, pálido e, para evitar tombar, sentou-se sobre uma pedra.
- Sigam vocês o rastro.
- Nós sozinhos?
- levem a espingarda. Você, Ntunzi, dispare.
- Mas não vai connosco, Zacaria?
- Não sou capaz
- Está doente?
- Nunca fui capaz.

O experimentado caçador e militar de muitas guerras vacilava no disparo final? Zacaria nos explicou, então, que ele não era capaz de enfrentar o sangue nem a agonia das presas. Ou o tiro era certeiro e a morte pronta ou ele desistia, arrependido.
- O sangue me fazer ser mulher, não digam a vosso pai...
Ntunzi levou a espingarda e, pouco depois, escutámos os tiros. Não demorou que ele surgisse arrastando o animal. A partir desse dia, Ntunzi tomou o gosto da pólvora. Levantava-se antes de amanhecer e seguia pelo mato, feliz como Adão antes de perder a costela.

***

Enquanto Ntunzi se reaprendia caçador, a mim, o ser pastor foi o que mais me deu gosto. Manhã cedo, levava as cabras a pastar.
- Toda a terra é caminho, para a cabra. E todo o chão é pasto. Não há bicho mais sábio - comentava Zaca.
Sabedoria da cabra é imitar a pedra para viver. Certa vez, enquanto eu o ajudava a recolher o gado no curral, Zacaria confessou: que havia, sim, uma lembrança que o visitava de forma recorrente. essa recordação er aa seguinte: durante a Guerra Colonial, uma ocasião, ele viu chegar ao quartel um soldado ferido.
Hoje ele sabe: os soldados estão sempre feridos. A guerra fere mesmo os que nunca saíram em batalha.
Pois esse soldado não passava de um menino, esse soldadinho sofria do seguinte mal: sempre que tossia era contagiosa: era preciso afastar-se. A Zacaria não lhe apeteceu apenas afastar-se do quartel. Ele quis emigrar do tempo de todas as guerras.
- Ainda be que o mundo acabou. Agora, recebo ordens é do mato.
- E do pai?
- Sem ofensa, vosso pai faz parte do mato.
Eu estava no caminho inverso de Zaca: um dia seria bicho. Como é que, tão longe de gente, nós ainda éramos homens? Essa era a minha dúvida.
- Não pense assim. Lá na cidade é que nós nos bichamos.No momento, não avaliava o quanto o militar estava certo. Mas hoje, sei: quanto mais inabitavel, mais o mundo fica povoado.

***

Havia muito que tinha deixado de entender Zacaria Kalash. As dúvidas começavam na razão do antigo nome. Ernestinho Sobra. Porque Sobra? A razão, afinal, era simples: ele era uma sobra humana, um resto anatómico, uma pendencia de alma. Sabíamos, mas não falávamos: Zacaria tinha ficado diminuído por rebentamento de mina. O engenho explodiu, o soldado Sobra levantou voo, tosca imitação de pássaro. Foi encontrado chorando, sem saber como caminhar: Ainda procuraram, em vão, algum dano no corpo. A explosão tinha danificado a totalidade da sua alma.
Mas as duvidas sobre a humanidade de Zacaria iam mais longe. Nas noites sem luar, por exemplo, ele disparava a espingarda para o ar, como se estivesse cumprindo salvas.
- O que faço? Estou a fazer estrelas.As estrelas, dizia ele, são buracos no céu. os incontáveis astros não passavm disso, de buracos que ele abrira, a tiro, no alvo escuro do firmammento.
Certas noites, as mais estreladas, Zacaria nos chamava para ver o espetáculo dos céus. Reclamávamos, ensonados:
- Mas nós estamos fartos de ver...
- Vocês não entendem. Não é para vocês verem. É para serem vistos
."
Mia Couto
o pior do amor é que essa sensação, que dá quando trago do livro pra ca, palavra por palavra... o pior é sempre um querer que seja seu...queria ter sido eu a escrever estas letras, queria leva-las ao mundo como minhas... mas aí a esrita destaca 'eu' com seu poder de se despregar e retornar desde o 'deposito de idéias', que é também a memoria. Mas tão real...
Mia Couto é deste tipo em mim.
Queria saber tão lindo...

24.6.11

"Declaração sobre Charcot:

Entre os muitos ensinamentos que no passado (1885-86) me foram prodigalizados por mestre Charcot na Salpêtrière, dois me deixaram uma impressão bastante profunda: que não devemos nos cansar de sempre considerar novamente os mesmos problemas (ou de lhes sentir os efeitos) e que não devemos nos preocupar com a oposição geral, se trabalhamos com honestidade."

Freud,
26 de fevereiro de 1924
"Palavras

Machados
Que batem e retinem na madeira,
E os ecos!
Ecos escapam
Do centro como cavalos.

A seiva
Mina em lágrimas, como a
Água tentando
Repor seu espelho
sobre a rocha

Que cai e racha,
crânio branco,
comido por ervas daninhas*
Anos depois eu
As encontro no caminho -

Palavras secas, sem destino,
Incansável som de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Governam uma vida"

Silvia Plath

* e eu que a esta altura desistia de ler... enquanto redigia
inevitável encontro
nem sei
se de repente
escorrega o horizonte
e a noite escapa

15.6.11

"Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem duvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil: ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever."

Pronto! apaixonei!:
Michel Foucault, em Arqueologia do saber

14.6.11

"
(...)

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

(...)

"

Hilda Hilst
Pesar do mundo

"pesar de tudo
pesar do peso
pesar do mundo
sobre si mesmo
pesar de nuvem
pesar de chumbo
pesar de pluma
pesar do mundo
desponta estrela
no vão imenso
por ti suspenso
à tua espera

tudo se afronta
pedra com pedra
a própria onda
quando se quebra
a melodia
onde me leva
onde alivia
onde me pesa
tudo se agita
durante a queda
o que sustenta
a nossa terra?

e nesse quando
somente um ritmo
peso e balanço
um som legítimo
canção sem medo
de você pra mim
ó meu segredo
te rezo assim:
desde o princípio
ao ponto cego
eu arremesso
um eco sem fim"

José Miguel Wisnik
Paulo Neves
e
Caetano, no Onqotô
2005
Graffitis 1992

"Por meus passos velozes
vapores
suores
sotaques
antenas
Antunes
stones
Por meus passos ligeiros
graffitis
mau cheiro
Não fosse por você eu não notava essa cidade

O meu amor pelas misérias
me leva,
me trouxe,
roça o que interessa
e fez de mim
alguém que eu sou hoje

Em meus passos, sapatos
poeiras
postes
postos
poetas
profetas
projetos
notícias
negócios
Por meus passos rápidos,
meus alvos
meu norte
Por minha lente meu olhar,
meu foco
meus olhos

O meu amor pelas misérias
me leva,
me trouxe,
roça o que interessa
e fez de mim
alguém que eu sou hoje"

Adriana Calcanhotto
Morte e vida Severina

"- O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina
:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra."

João Cabral de Melo Neto

10.6.11



quem disse que pau que nasce torto não endireita?
quem acreditou?
"Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e voltar sempre inteira."

Cecília Meireles

7.6.11

"Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?

Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato."

Clarice Lispector, "Um sopro de vida".
emprestado do blog da dri, onde as vezes deixo o tempo passar. e as vezes paro.