9.7.10

"Quem se alimentou da palavra, nos deixa com ela

O avô materno de José Saramago chamava-se Jerónimo Melrinho e a avó, Josefa Caixinha. Esses dois personagens haveriam mesmo de produzir um escritor. Melrinho era analfabeto, mas o jovem Saramago não tinha nenhuma dúvida de que os casos, lendas, aparições que ele contava continha “toda ciência do mundo”. Em noites de verão, Melrinho levava o neto para dormir debaixo da figueira e lá desfiava toda sua ciência. Manifestações de afeto. E esse afeto acabou se tornando, por vias tortas, o ensaio do olhar de um escritor, que contou a história de como aprendeu com seus personagens por ocasião do prêmio Nobel.

Tive a oportunidade de ver Saramago em Belo Horizonte, em uma muito concorrida palestra no Grande Teatro do Palácio das Artes, após o prêmio. Exausto de uma maratona de viagens, entrevistas e colóquios demandados de um Nobel, Saramago conta sua saga para explicar seu cansaço, antes de começar a palestra em si. Mas logo emenda, dizendo algo mais ou menos assim (não tive a presença de espírito de anotar): que como o verbo ressuscitou no terceiro dia, a palavra revigora. De modos que, naquele momento, depois de começar a falar, nós já tínhamos diante de nós um homem menos cansado. Alimentar-se da palavra pareceu-me uma das mais belas expressões de amor ao ofício de escrever.

Talvez fosse por isso que seus personagens fossem tão fortes, nascidos e criados na força da palavra. Blimunda é talvez das mais instigantes, com seu olhar de ver o por dentro das pessoas. Menos de Baltazar, que seu amor fazia respeitar as intimidades. Em História do Cerco de Lisboa, a capital portuguesa se materializa em um dos mais belos roteiros que uma cidade pôde receber. O Cristo que ele buscou na sua arqueologia particular é humano. O cachorro perdido que guia os personagens d’A Caverna só pode ser “Achado”. O labirinto de Todos os Nomes. As nossas angústias que nos conduzem aos mais sombrios lugares de nós mesmos até a cegueira. E por aí vai.

Não li todos e oxalá tenha tempo de ler os que ainda não e voltar aos que me dão saudade. Com a partida do autor que se criou entre personagens, acordei desacorçoada, sem saber o que dizer. Um dia iremos todos. Mas dava um alento saber que ainda estava vivo, que podíamos ainda ouvir qualquer opinião sobre os acontecimentos. Para concordar ou revoltar-se. Não ouviremos mais. Não teremos nada de novo vindo de Saramago. De tudo que ele viu e aprendeu, está nos livros. Junto com a ciência e o afeto que ele herdou de Melrinho e Caixinha."


Ana Paola Amorim (por ocasião da morte de José Saramago, em 18/06/2010)

de quem, por sinal, tenho o inenarrável prazer de ser amiga!
e é nossa companheira por estas bandas
e outras
largas sempre

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