Este é, sem duvida o fragmento mais tocante deste tempo
que vivo.
Do Caio Fernando Abreu.
“Mas gosto, gosto das pessoas. Não sei me comunicar com elas, mas gosto de vê-las, de estar a seu lado, saber suas tristezas, suas esperas, suas vidas> Às vezes também me dá uma bruta raiva delas, de sua tristeza, sua mesquinhez. Depois penso que não tenho o direito de julgar ninguém, que cada um pode – e deve – ser o que é, ninguém tem na da com isso. Em seguida, minha outra parte sussurra em meus ouvidos que aí, justamente aí, está o grande mal das pessoas: o fato de serem como são e ninguém poder fazer nada. Só elas poderiam fazer alguma coisa por si próprias, mas não fazem porque não se vêem, não sabem como são. Ou, se sabem, fecham os olhos e continuam fingindo, a vida inteira fingindo que não sabem.
Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me conhecesse, onde não me tratassem com consideração apenas por eu ser “o filho do fulano” ou” o neto do beltrano”. Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado – mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou. É muito confortável bancar o infeliz e angustiado quando se vive num bom apartamento, quando se tem um copo de leite quente toda noite antes de dormir, uma mesada no fim do mês e uma mãe que basta estalar os dedos para dobrar-se a meus pés como uma escrava oriental. Ter demais é o meu mal. Se tivesse que batucar numa maquina de escrever todos os dias num escritório cheio de gente preocupada demais consigo mesma para dar atenção aos meus problemas, se tivesse que andar de ônibus superlotados, usar roupas velhas e sapatos furados, então poderia saber se existe ou não essa força que em vão tento encontrar em meu corpo.
Tem sido tudo muito fácil para mim, fácil demais. Às vezes desejo ardentemente que aconteça uma desgraça, uma catástrofe que me jogue ao nível do chão, para me obrigar a despir as máscaras, os falsos gestos, as falsas palavras. Uma coisa que me torne ínfimo, ainda mais confuso e só do que sou, que me deixe a sós comigo mesmo, nu, na frente de um espelho, a investigar a minha verdadeira condição. Então viria a solução final, definitiva. Levantar-me aos poucos, como um pé-de-vento, lentamente crescendo, incorporando outros seres a mim, e girando, girando sempre, tornar-me tormenta, furacão, vendaval, terremoto, cataclismo. OU me dissolveria em poeira à primeira brisa que soprasse – quem sabe?
Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar. A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: “Achei! Achei!”, mas ele escorrega, se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça. A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último. Mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas. E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano. Um dia a gente chega na frente do espelho e descobre: “Envelheci”. Então a busca termina. As perguntas calam no fundo da garganta, e vem a morte. Que talvez seja a grande resposta. A única.
Parei um pouco de escrever, reli as páginas anteriores até a frase acima. Às vezes, relendo coisas que eu mesmo escrevo, tenho a impressão de que nasceram de um outro Maurício. Um Maurício muito velho, desiludido, amargo. Levanto, vou até o espelho, Investigo meu rosto. Ele não tem rugas, nem sulcos, nem mesmo a sombra de uma tristeza ou dor muito fundas. É um rosto de animal jovem, um rosto de dezenove anos, que ainda não viu nada, não sentiu nada e, principalmente, que não sabe nada. Mas por trás dele, sinto o outro. O Outro que um dia virá a tona, talvez sem sequer anunciar a própria chegada. Nesse dia, levantarei bem cedo e, olhando meus traços refletidos nesse mesmo viro, descobrirei uma luz nova no fundo dos olhos amassados pelo sono. Haverá como uma aura brilhante em torno dos cabelos despenteados, na face que de alguma forma não s era mais a minha, e será definitivamente a minha. “Chegou”, pensarei. E tudo será diferente. Ou não?
Mas enquanto ele não chega vou pingar um ponto final, fechar o caderno, a porta do quarto, chamar o elevador, descer e ficar caminhando horas pelas ruas, ou então me enfiar dentro de um cinema, sem sequer olhar os cartazes ou o nome do filme. Quero ver outras pessoas, outros corpos, outras caras, mesmo que sejam inexpressivos, desconhecidos. Eu também serei inexpressivo e desconhecido para elas, e nesse desconhecimento e nessa inexpressividade mergulharemos todos juntos num filme qualquer, de mãos dadas no escuro, como um bando de meninos dançando a cirandinha.”
...
aos dezenove anos
, no livro Limite Branco
é "o romance de formação de Caio Fernando Abreu" - lê-se na orelha do livro
é a coisa mais viva que tenho lido
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